sábado, 8 de setembro de 2012

23| O que veio depois.



Domingo de manhã.
A neblina era forte, toda a paisagem não podia ser vista da janela, nem da parte externa da casa. Parecia que ninguém havia acordado nem os pássaros, nem insetos, todos estavam ainda em suas casas curtindo aquele friozinho de inverno.
No quarto, enrolados sobre os lençóis mais improváveis da vida, estavam Daniel e Thiago dividindo uma mesma cama, sem a menor preocupação sobre nada do que os aguardava.
O que tinha acontecido surpreendeu a ambos, pois nunca, apesar de tudo que sentiam pelo outro, pensariam ser capazes de chegar aonde chegaram.
Daniel que estava do lado esquerdo virado para o criado-mudo que tinha um abajur branco, sonhava algo totalmente perturbador. Em seu sonho, estava num campo verde a perder de vista, estava vestido de camisa e bermuda branca com uma corrente dourada envolta no pescoço. Olhava de um lado para o outro como se não entendesse o que fazia naquele lugar, mas sentia-se seguro e em paz naquele lugar desconhecido. A grama era macia e bem verde.
“Seria um belo campo de golfe! – pensou”. Quando alguém chegou ao seu lado e segurou sua mão, ao olhar para o recém-chegado, sorriu, a roupa dele era uma camisa de botão azul claro e uma bermuda branca, estava descalço. Reconheceu Thiago que o puxou pela mão e se puseram a correr pelo campo. Percebeu que algo se aproximava deles, as roupas brancas esvoaçantes da senhora a deixava com aspecto fantasmagórico, o pedaço de pau que funcionava de apoio estava firme em sua mão.
_ A cigana! – disse surpreso, quando a viu sorrindo ficar para trás, pois não pararam.
Um casal do outro lado passou por eles sorrindo como se estivessem felizes por eles. Daniel se impressionou quando o casal de branco e rosa claro era Ricardo e Roberta. A surpresa maior foi que não lhe passou em momento algum nenhum sentimento de raiva ou ódio. Deu tempo ler os lábios de Roberta:
_ O amor liberta. – ficando para trás.
Ao olhar para frente tudo estava diferente. O céu estava negro. Podia se ver raios, ameaçava cair uma grande tempestade. Quando olhou para o chão, a grama verde e macia se deitava por causa do vento que cada vez mais ficava forte.
_ O que é isso? – perguntou Thiago sem entender, soltando sua mão e olhando ao redor – Como viemos parar aqui?
_ Não sei. Não sei! Quando vi estávamos aqui! – Daniel se explicava.
_ Que ventania... Parece até que vem vindo um furação...
_ Deixe de ser bobo, não existe esse tipo de situação no Brasil.
O vento ficou mais forte, estava muito perigoso ficar ali. Quando Daniel olhou para o céu viu uma coluna de nuvem descer rodopiando com o vento e fazer contato com o solo. Thiago tinha se afastado e se perceber que estava próximo ao tornado.
_ Thiago! Saia daí, o tornado!
Tarde demais, Thiago virou-se e viu percebeu a grandeza da coluna rodopiante apenas voltou-se para Daniel que p viu ser puxado pelo vento como um objeto qualquer.
Abriu os olhos. Estava virado para a janela que aberta, mostrava que a neblina ainda escondia tudo. Sua cabeça doía, muito. Levou sua mão até ela como se pudesse com esse jeito se curar. Sabia o que tinha acontecido durante a noite, não acreditou que chegou a tal ponto. No sonho é tudo tão mais fácil. Tudo é tão mais aceitável.
Sem graça, virou-se para o outro lado da cama que estava vazio. Levantou-se como se tivesse tomado um choque.
_ Não acredito que ele me deixou aqui. Filho da mãe! Como pode fazer isso? Depois que me expus desse jeito! – saiu correndo do quarto, atravessando a sala e vendo de lá que o carro ainda estava na garagem. – Como ele foi embora?
_ Quem foi embora? – disse Thiago, com um pano nos ombros vindo da cozinha.
_ Ah! Ninguém. Ninguém foi embora.
Ficaram um tempo sem se falar. Não sabiam o que dizer um para outro. Thiago quebrou o silêncio.
_ Quer café? Acabei de passar.
_ Aceito sim! – grato por ele ter puxado um assunto.
_ Então, vai vestir uma roupa. – disse rindo.
Daniel não percebeu como veio do quarto, saiu correndo de volta. Thiago voltou para a cozinha correndo também, viu o leite derramando no fogão. Ele nunca conseguiu ferver o leite sem deixar derramá-lo. E não foi falta de tentativas, já havia ficado de guarda perto do fogão, mas sempre acontecia algo para tirá-lo de perto e o inevitável acontecer.
_ Nossa! O leite do mundo todo deve ter algo contra mim... Só pode!
Daniel entrou na cozinha e se espantou com a quantidade de comida.
_ Para que tudo isso se só a gente está aqui?
Sobre a mesa havia pães caseiros, bolos, suco, café, leite, manteiga e requeijão.
_ Sei que não vamos comer tudo isso, mas algumas coisas iriam passar da data de validade, então resolvi aproveitar antes que se perdessem. Leve tudo para casa.
_ Pelo jeito você não dormiu?
_ Como sabe? – perguntou sem se virar, estava limpando o fogão.
_ Pães e bolos que você mesmo fez. Isso exige tempo e ainda são onze e trinta.
_ Bem observado, mas dormi sim! Um pouco, mas dormi.
_ Deixa isso aí. Vem tomar café comigo.
Thiago já havia terminado. E se alegrou pelo convite, mas se conteve no sorriso.
_ Posso te dizer uma coisa?
_ Claro que pode?
_ Tem que me jurar que não vai ficar chateado.
_ Fala moço.
Thiago se debruçou sobre a mesa, como se fosse contar um segredo, passou a mão por trás do pescoço de Daniel, puxou dando-lhe um beijo no rosto:
_ Você é bom de cama demais!
Daniel não sabia onde pôr a cara, ele nem comentaria nada sobre o que aconteceu depois de que se deitaram na cama, mas Thiago sempre quebrava esses protocolos.
_ Co- co- co- como assim, bom de cama? – gaguejou extremamente envergonhado.
_ Como é ser bom de cama, Daniel?
_ E aconteceu mesmo? – nem olhava para Thiago.
_ Você não se lembra de nada? – fez cara de decepcionado – Nadinha? Nada mesmo?
_ É... Não me lembro de muita coisa. Não posso dizer “Nossa! Como eu me lembro de tudo!”, mas me lembro de algumas coisas...
_ Então vai ser o jeito eu contar... Quando a gente chegou, eu estava com medo de você porque a todo o momento estava me ameaçando com aquela arma...
_ Era... – tentou falar.
_ De brinquedo? Eu sei. Sua arma de quinhentos anos atrás quando você queria ser policial. – Daniel ficou mais envergonhado – Na realidade eu sabia desde o momento que você a encostou em minha barriga.
Daniel fez cara de surpreso.
_ E porque você veio comigo? Porque não me desmascarou lá?
Thiago esboçou uma cara de sapeca.
_ Para chegarmos aonde chegamos!
_ Você só queria me levar para cama! – disse meio indignado enquanto partia um pedaço de bolo.
_ E o que você queria me seqüestrando? – “Rá! Te peguei! – pensou Thiago”
_ Estava te protegendo daquele otário que estava te abusando. Você  me deve uma explicação porque estava com ele. Ele podia ter te... – mediu as palavras. – te feito mal.
_ Não me lembro de ter te pedido para ser meu segurança e muito pior apontar uma arma. Sem contar que você não é nada meu.
Daniel fez cara de desapontado.
_ Não era nada meu, mas voltando para o susto, chegamos aqui e você  começou a dizer um monte de coisas que estava só e que depois que brigamos lá em sua casa, tudo que você fazia parecia sem graça, resumindo se declarou para mim.
_ Essa parte eu lembro.
_ Então, você fingiu que ia sair do quarto e voltou e me deu um abraço... Que virou um beijo e que beijo! E quando nos deitamos você...
_ Eu?
_ Dormiu. – fez uma cara de decepção.
_ Dormi? – meio feliz. – Eu dormi. Nossa! Que susto! Ufa!
_ Pois é, que decepção! – Thiago disse sorrindo. –  Álcool é uma desgraça mesmo, não é?
_ Pelo menos, não é? Só minha cabeça está doendo muito...
Thiago foi se levantando da mesa.
_ Só a cabeça? – começava a rir. – Tem certeza?
Daniel levantou os olhos para cima como se conferisse alguma coisa.
_ Ai! – o grito foi instintivo – Não?
Thiago balançava a cabeça positivamente se preparando para sair da cozinha correndo.
_ Não? – Daniel certificou-se que era mesmo verdade. – Nããããããããããããão!
Abaixou o rosto na mesa como se chorasse, Thiago que tinha saído rindo , voltou para ver o amigo.
_ Calma Daniel. Isso passa!
_ Cachorro, filho da mãe, safado sem vergonha, descarado, seu... Seu... – mostrou-se irritado – Você me... Arghhhhh!
_ Olha lá o que você vai falar...
_ Thiago eu não acredito nisso. – conformado.
_ Se não acreditar te faz bem... Não acredite. – disse sentando-se novamente à mesa – Eu queria muito saber como ficamos agora?
_ Como ficamos? – nem ele sabia – Quero saber também.
Ficaram em silêncio novamente.
_ Não sei se estou preparado para essas coisas. – disse Daniel tentando ser sincero.
_ Nem eu! Não consigo pensar em nada.
_ Você vai embora mesmo?
_ Não é ir embora definitivamente. É só um ensaio. Nada definitivo.
_ Não vá! – pediu de cabeça baixa – Por favor!
Thiago o olhou fixamente, porque agora ele não estava bêbado.
_ Eu te disse que não é nada definitivo, é só  um ensaio.
Daniel se levantou como se tudo estivesse muito óbvio.
_ Ainda! Com certeza, eu sei que você não volta.
Era difícil para Thiago abrir mão do seu maior sonho para poder viver de maneira que tudo poderia mudar no outro dia.
_ Já sei! Vamos deixar as coisas como estão. Vai sei melhor para todos nós. – disse Daniel.
_ Como assim? Deixar como estão? Você fala como se nada tivesse acontecido?
_ Então como é que você quer que eu fale? - Daniel estava inseguro.
Nem Thiago sabia.
_ Não podemos ficar com isso, você sabe o quanto as pessoas são cruéis.
_ Minha felicidade e a sua depende da droga da opinião das pessoas.
_Thiago, você sabe do que estou falando, para gente é  normal. Para eles é normal, só que o “normal” deles é falso porque se sentem incomodados, vão nos achar esquisitos, pensarão que somos depravados e pensamos em sexo o tempo todo. Sem contar que sempre estarão na defensiva conosco. Os homens por pensar que vamos agarrá-los quando vacilarem e as mulheres porque pensarão que não os deixaremos para elas.
_ Como você pensava...
_ É por isso que te digo. Muitos negam mais no fundo são assim.
_ Quero ir para casa. Preciso descansar.
_ Thiago estou falando isso para nosso bem.
_ Na real, você continua do mesmo jeito e o pior é que aconteceu tudo que poderia acontecer entre nós e você ainda é assim. – se levantou para sair – Te espero na sala para irmos para casa. Não se esquece de pegar a comida toda. – saiu.
Daniel deu um soco na mesa.
No caminho de volta, eles já conheciam aquele silêncio habitual entre eles. Muita coisa mudou em pouco tempo, uma amizade que desde muito tempo fora forte e saudável, agora sofria diversas variações por causa do que sentia.
Daniel, enquanto dirigia, pensava no que tinha acontecido, sabia que não conseguiria encarar a sociedade, ainda mais na pequena cidade de Pedra Branca, onde moravam. Em sua mente, a confusão de pensamentos era insuportável, pensar em como seus pais reagiriam, seus amigos, sua reputação iria por água abaixo. Não queria que isso acontecesse, afinal trabalhou bastante para chegar aonde chegou e ser respeitado por todos.
Thiago estava decepcionado. Não podia imaginar que depois de tudo que havia acontecido Daniel ainda reagiria assim. “Sou mesmo um idiota em insistir! Me pede para ficar, mas não quer ter nada... Que idiota! - pensou”. A verdade é que Thiago não queria assumir publicamente, estava satisfeito com a situação, afinal para que falar para as pessoas? A única coisa que saberiam fazer é olhá-los com desprezo, ou viver fingindo que os aceitava. Ainda não entendia como conseguiam sempre julgar antes de compreender e se pôr no lugar do outro, mas Daniel pensava que tudo devia ser às claras, e mesmo se fosse escondido descobririam um dia.
Não conversaram nada até chegarem à casa de Thiago. Dentro do carro, ficaram um momento em silêncio como se esperassem que alguém tomasse a frente, mas ninguém se decidia. Thiago quebrou o silêncio.
_ Meu CD!
_ Deixe-o comigo.
_ Então te dou de presente.
_ Mas fui eu quem te deu.
_ Pode ficar. Eu já tenho um desse.
_ Thiago...
_ Você é muito complicado. Acho que você tem razão mesmo, será bem melhor para nós. Vou evitar muita coisa.
Daniel olhou para todos os lados para se certificar que não tinha ninguém na rua, rapidamente passou a mão por trás do pescoço do Thiago e o puxou num beijo.
_ Já te entendi. Você gosta de ter as pessoas disponíveis para você sempre que você quer. Elas têm que ficar presas a você porque, de certo modo, são sua propriedade. Por que você  é assim?
_ Eu... – tentou se defender - Thiago...
Ele abriu a porta do carro e saiu sem olhar para trás. Daniel respirou profundamente e partiu.
Ao entrar em casa, Thiago começou a chorar. Dona Zita saiu do quarto para receber seu neto e quando o viu sentado no sofá chorando correu para acalentá-lo.
_ O que foi meu neto? A festa foi tão ruim assim? – ela sabia o que tinha acontecido porque viu pela janela do quarto.
_ O idiota do Daniel.
_ O que ele fez dessa vez? Ele não te machucou não é  mesmo?
_ Não por fora, minha avó.
_ Depois dizem que as mulheres são complicadas...
Thiago não esperou a Dona Zita perguntar se queria desabafar, começou a contar o que havia acontecido e sua avó pasma com tudo que estava sendo relatado entendeu o sofrimento do neto.
_ Nossa! Que menino complicado.
_ Pois é! Foi o que falei para ele.
_ Meu neto, a vida é sua, mas como sua avó não posso deixar que alguém te maltrate tanto assim. Nem quando você namorou a Fernanda, que eu considero a pior de todas, você sofreu desse jeito.
_ Por quê? Por que isso tinha que acontecer comigo. O que foi que eu fiz para merecer isso? Para mim já é um castigo gostar de alguém do mesmo sexo, e ainda mais um cabeça dura, idiota, estúpido como esse.
_ Meu querido, todos, eu disse todos estão sujeitos a isso. Pode acontecer com qualquer um que esteja vivo. – afagava-lhe a cabeça enquanto falava. – Muitos reprimem o que sentem, não querem se expor, pensam que estão doentes da cabeça, mas é algo natural sentir isso, mas quando se reprime o que sente ou finge não existir o sentimento ou atração é escolha da pessoa.
_ Sabe... Não quero fingir o que sinto, nem esconder.... para ele pelo menos.
_ Eu sei e é por isso que sofre, porque a pessoa que você  gosta não deseja isso. Então...
_ Eu quero deixar de sentir. Se gostar foi fácil, deixar de gostar também vai ser.
_ Está disposto a abrir mão do que sente?
_ Não estou feliz, para mim a esperança de ter quem quero não  é mais suficiente. – seus olhos marejaram novamente – Cansei...
_ Eu te apoio em tudo que você decidir. – abraçou o rapaz e mudou de assunto – as meninas ligaram diversas vezes para você. Acho que queria falar algo importante contigo.
_ Nossa, eu sai no meio da festa que elas organizaram para mim. – limpando as lágrimas, grato pela avó ter mudado de assunto - Nossa! Que vacilo!
_ Ligue para eles porque disse que assim que você chegasse, retornaria.
_ Pode deixar, eu retorno agora!
_ Promete que vai ficar bem? – disse segurando o rosto dele com a palma da mão.
_ Sim! Eu te dou minha palavra.
Depois de comer alguma coisa e arrumar o quarto, ligou para Roberta.
_ Ei, é o Thiago!
_ Oi, Thiaguinho! Menino, onde você se enfiou ontem à  noite? Não conseguimos achá-lo em lugar nenhum.
_ Eu tive que sair.
_ Onde você foi? Tentamos te ligar e seu telefone só dava fora de área?
_ Pois é, eu...
_ Deixa para lá. Posso ir a sua casa para conversar com você?
_ Claro que pode! Estou em casa agora.
Não demorou muito e Roberta batia na porta da casa do Thiago, que a atendeu com um sorriso e um abraço. Eles sentaram no sofá, Dona Zita havia saído para comprar alguma coisa.
_ Roberta, queria pedir perdão por ter saído antes do final da festa, fui muito indelicado e grosso, afinal vocês se dedicaram tanto para fazê-la que...
_ Não é por isso que vim aqui, Thiago. Não se preocupe com isso. Está tudo bem.
_ Então... O que foi que aconteceu? – Thiago estava preocupado, pois a amiga mostrava-se séria.
Roberta respirou fundo antes de falar.
_ Eu sei que você é gay!
_ Oi? – disse surpreso. – Como assim?
_ Eu sei que ontem você ficou com um rapaz, os vi saindo da festa.
_ Roberta, eu acho que você deve estar enganada e...
_ Não, não! Engano é a última coisa da qual podemos falar. Eu vi você beijando um rapaz de dreads, ou minto?
Thiago não falou nada, Roberta percebeu que ele ficara tenso por ter sido exposto. Tentou acalmá-lo.
_ Não se preocupe meu amigo! Não tenho nada contra, e também se tivesse não seria da minha conta, afinal a vida é sua.
_ Obrigado! Você não sabe o quanto isso é importante para mim. – disse aliviado.
_ Não precisa agradecer, eu quero dizer que você pode contar comigo sempre que precisar conversar ou sei lá... Qualquer coisa, ok? Quando você se percebeu que era gay? Você já namorou meninas...
_ Já tem um tempo. Na realidade,... Nossa! Que esquisito, falar isso com você...
_ É assim mesmo, deixa eu te fazer uma pergunta.
_ Fala.
_ Se você é gay... Porque você me agarrou aquela época dizendo que era apaixonado por mim, me pedindo para que largasse o Daniel e ficasse com você? 

Continua...

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