Thiago
via o galpão sumindo atrás deles pelo retrovisor. Estava nervoso porque nunca
em sua vida imaginou Daniel, seu amigo de infância, ameaçá-lo com um revólver.
“Está
louco não tem condição, deve ser o álcool, e agora meu Deus?” – pensava
enquanto dirigia.
_
Está quieto. Está com medo? Está com medo, sua bicha? – dizia Daniel no banco
do passageiro apontando a arma para o amigo – Medo? Logo de mim? Seu amigão de
verdade!
_
Acho que você está descontrolado, cheio de álcool e nem sabe o que está
fazendo, cuidado para não se arrepender depois. – dizia Thiago tremendo.
_
Sei muito bem o que estou fazendo. – deu dois leves tapas na perna do Thiago
que o olhou sem entender, sentia a mão de Daniel escorregar pela perna e chegar
ao bolso, onde estava o celular do rapaz e o puxou.
_
Isso fica comigo! – sorriu. – Quer escutar uma música?
_
Estou sem clima para música. – Thiago apesar de ameaçado com a arma, se sentia
confiante para enfrentar o amigo que fazia questão de ser sarcástico e irônico
– Você vê clima para música aqui? Tenho uma arma apontada para mim. Isso não me
faz rir, nem me sentir bem.
_
Tem certeza que não quer ouvir música? – apertou a arma sobre a perna dele.
_
Quero! – Thiago o olhou nos olhos por um breve momento e parecia que ele estava
se divertindo diante do seu desespero, olhou para arma e voltou-se para a
estrada que estava deserta – Mas antes de ouvir, eu queria uma resposta sua.
_
Minha resposta é não, por enquanto! Segue em frente até a próxima direita,
depois segunda esquerda e reta toda vida.
_
Para onde você está me levando, Daniel? – Thiago não conseguia esconder a
aflição.
_
É você quem está dirigindo, não sou eu...
Sabia
que o diálogo com ele seria bem estressante. Decidiu ficar calado e só guiar o
carro até o destino. Daniel pegou um cd e ligou o som, a voz feminina preferida
de Thiago começou a cantar uma música que ele já sabia.
“Cruel”–
ele pensou – “Cruel e sutil”.
No
galpão ninguém reparou a ausência de Daniel, só a Patrícia que tinha ido ao
banheiro três vezes para ver se ele saía de lá, mas nada. Ligou para o celular
dele que dava caixa postal.
_
Onde esse menino está? – uma dúvida a fez tremer – Será que? Não, não! Ela e a
Roberta, não mais...
Uma
mensagem chegou pelo celular. Do Daniel. Ela se alegra.
“Oi tive que sair mais cedo
da festa por motivos maiores. Tem um táxi te esperando assim que você quiser
sair, já está pago. Depois nos vemos.”
Tentou
ligar em cima da hora, talvez ele atendesse. Chamou, mas desligou.
_
Não acredito que ele me deixou aqui sozinha, sem ninguém. Idiota... Pelo menos
tem o táxi para ir embora. Ele vai ter que me explicar isso.
Flávia
chegou ofegando na área do galpão que era destinada aos alimentos, encontrando
Roberta preparando alguns petiscos.
_
Amiga, para tudo!
_
O que foi Flávia, parece que veio correndo?
_
Eu vim correndo para te contar uma coisa que eu vi lá fora e você nunca vai
acreditar. Nunca! Nunca! Nunca!
_
Meu Deus do céu, fala logo então! Não me deixe nervosa!
_
O ... O ... Thiago... estava ... beijando...
_
A Mariah? – empolgou
_
Não! Ah se fosse ela! Ele estava beijando... Um carinha de dreads.
_ Como é que
é?
_ Isso mesmo
que você ouviu. Ele está ficando com um carinha. Ele é gay! Gay!
_ Não acredito, um partidão daquele desperdiçado.
Não acredito mesmo, só vendo!
_ Então vamos! Eles estão se agarrando lá no
fundo.
Quando chegaram aos fundos, nada viram. Não havia
ninguém.
_ Então, cadê o povo se atracando?
_ Não sei, eles estavam aqui com certeza, não sou
doida! Devem ter mudado de lugar, para melhor se acomodarem. – disse rindo.
_ Vamos ligar para ele se ele não atender, é
porque deve estar agarrado com alguém que provavelmente será o carinha que você
falou.
Roberta pegou o celular e discou, ao terceiro
toque, viu uma moça se aproximando, era a Mariah. Roberta desligou o celular.
_ Vocês viram o Thiago aí?
_ Não, estamos procurando por ele. Estamos
ligando para ele, mas ele não atende. – olhou para Flávia que só faltou dizer
“Não disse!”.
_ Está bem, quando encontrá-lo, me avisem e digam
a ele que estou procurando-o.
_ Você não está acreditando no que te falei? –
depois que Mariah saiu, Flávia disse vendo Roberta pensativa – Porque eu
mentiria sobre isso?
_ Eu acredito em você, estou pensando que se o
Thiago é gay... Ele só pode ter me beijado aquele dia, porque o Daniel pediu...
– refletia. – Então ele armou tudo.
Thiago continuava seguindo pelo caminho que
Daniel indicara. Algumas vezes olhava de relance e podia jurar que apesar do
cheiro de bebida, o amigo estava lúcido, mas não tinha como ter certeza.
Estavam numa estrada de terra, parecia que Thiago estava voltando à infância.
“Não acredito que ele me trouxe aqui”. – Thiago
ia reconhecendo a estrada e algumas placas que via, Daniel só o observava, viu
no rosto do amigo um pequeno sorriso apesar de tudo, por ter reconhecido o
local.
_ Reconheceu? Que bom! É para lá mesmo que vamos.
_ Fazer o que lá?
_ Conversar...
_ “Ah, Cláudia, senta lá, né!”. Você me tirou da festa, do bem bom para
conversar comigo? Você já foi mais prático!
_ Bem bom? E ficar agarrando outro homem é bom,
é? Você me disse que nunca tinha ficado com homem nenhum. E a primeira coisa
que vejo é você pendurado no pescoço de um canalha que só queria se aproveitar
de você.
Thiago, mesmo tendo pouca experiência, percebeu
que o amigo demonstrava ciúmes.
_ Espera aí! Você está com ciúmes? É isso mesmo?
_ Vontade você tem que eu morra de ciúmes de você
– disse afetado – É cuidado! Não gosto que se aproveitem dos meus amigos.
Thiago não agüentou e soltou uma bela risada.
_ Está rindo de quê?
_ De como as pessoas mudam tão rapidamente. Você
está apontando uma arma para mim e vem falar de cuidado de amigo...
Depois de passar por um mata-burro, avistaram uma
casa grande no alto do morro, seguiram para lá, e quando Thiago a viu sorriu
porque havia muito tempo que não ia nesta casa que trazia tantas lembranças
boas.
A varanda, as portinholas, os azulejos com
detalhes azuis, havia uma janela com vidros coloridos, mas faltava um.
_ Nossa! Está tudo igual do jeito que a gente
deixou. Até o vidro da janela que quebramos jogando bola, sua mãe ficou uma
fera. – analisava tudo. – Deve ter uns dez anos que não venho aqui.
_ Vamos entrando! – Daniel o tirou do transe de
contemplação cutucando-o com a arma.
Saíram do carro, Daniel pegou o cd que tocava, e
as chaves que estavam com Tiago. A casa grande realmente estava do jeito que
deixaram, parecia que ninguém tinha ido lá há muito tempo, mas estava limpa.
Alguns móveis estavam cobertos com panos e lonas. Daniel fez Thiago entrar num
quarto, fica aí que eu já volto. Daniel saiu ligando algumas luzes, Thiago ia
seguí-lo, mas estava cansado, sentou-se na cama que estava recém-trocada. Não
cheirava a mofo nem poeira. Resolveu deitar.
_ Fiquei sabendo por terceiros que você vai
viajar. – Daniel retornava, Thiago se levantou rapidamente.
_ Quem te contou?
_ Não interessa. Não iria me contar. – pegou uma
cadeira e sentou-se em frente a ele.
_ Depois da nossa última conversa, pensei que
nada mais da minha vida, digo nada da vida de um gay enrustido te interessasse.
Sinceramente, acho que você está louco! – Daniel se assustou com a declaração –
Sim! Louco! Não te entendo mais Daniel. Você era todo amor com Roberta,
desistiu dela, depois ficou obcecado para voltar, era meu amigo, descobriu que
eu gostava de você, me repudiou como seu eu fosse o mais imundo do planeta,
agora me traz para cá para conversar, num lugar tão significativo, onde a gente
cresceu.
Daniel iria falar, mas foi interrompido.
_ Sem contar que namora uma moça que você nunca
olhou, e nem dá valor, mesmo sendo sua namorada agora, você a trata como um
lixo. Posso considerar isso como características de alguém que não está em sua
consciência normal.
_ Você quem está perdido! Está em um quarto como
um louco que tem um revólver, mas fique tranqüilo, não pretendo te maltratar,
por enquanto. – pôs o cd para tocar. – Ainda quer ouvir música?
_ Inconveniente. Talvez você me ajude a acabar
logo com isso. – disse fazendo uma cara de cansado e marejando os olhos – não
agüento mais. Sua inconstância é
terrivelmente cansativa. O fim é o descanso que preciso, já que não vou ter o
que quero.
_ Tão dramático... Não me peça isso, tenho
costume de ajudar meus amigos no que precisam.
_ Me considera amigo agora! Você é muito complicado!
A voz da cigana soou na cabeça de Daniel como uma
confirmação do que dissera.
_ Complicado e difícil. Não sei porquê você é
assim, mas não sou um amigo perfeito. Eu sou homem e canso. Quer saber mais
cansei desse seu joguinho idiota de pensar que pode ter tudo quando quer e
largar quando enjoar e tornar pegar. Eu e nem os outros somos brinquedos. E...
_ Vai-me deixar falar o que descobri?
_ Você pode falar se quiser, mas não me
interessa. – abaixou a cabeça para não olhar para o amigo como se não lhe
interessasse mesmo.
Daniel abaixou a cabeça tentando criar coragem
para falar. Era difícil para ele. Tudo também era muito novo. O Daniel
ameaçador do carro tinha sumido. Aquele ali era o que o Thiago conhecia.
_ Descobri que você é meu único amigo verdadeiro.
Todos os outros que eu considerava, eram apenas interesseiros e aproveitadores.
Thiago continuava, de cabeça baixa, como se não
tivesse ouvido nada.
_ Me certifiquei na festa! Quando eles vinham até
mim, eu dava um jeito de mostrar que não tinha dinheiro ou não queria pagar
para eles, depois disso não os via mais. Nem me ofereceram nada, como muitas
vezes já paguei. Nem sequer ficaram comigo.
Thiago não via que Daniel chorava. Estava
vulnerável.
_ Não te interessa saber... Que... Tudo aquilo
que te disse... Quando descobri sobre você... Foi impensado e da boca para
fora? - Thiago levantou a cabeça e percebeu as lágrimas do amigo, se comoveu. –
A Patrícia não é nada. A Roberta deixou de ser. Quando descobri que só podia
contar com você!
Um clarão iluminou o quarto rapidamente, seguido
de um som de trovoada. Começou a chover torrencialmente lá fora. Daniel não se
mexeu. Thiago se assustou, mas voltou a observar o amigo.
_ Por que as pessoas me olham com interesse pelo
que tenho? Só me procuram quando precisam de algo. – Era triste perceber que
amigos eram parasitas. – “Véi!” Ninguém gosta de mim pelo que sou. Nem mesmo
você! – olhou para Thiago - Não mais. Vai embora, ia até sem falar se eu não
descobrisse.
Daniel fez menção em sair do quarto, mas foi até
a porta. Thiago se levantou da cama e parou.
_ Não vá embora. Por favor, não vá! – chorava.
Tiago, não sabia como reagir, ficou com medo porque o amigo chorava como se
fosse o fim do mundo. Era o álcool. Daniel baixou os ombros e voltou de repente
e deu-lhe um abraço. A princípio, Thiago não respondeu, mas em seguida, o
abraçou. A arma havia ficado sobre a escrivaninha que estava ao lado da porta.
_ Calma moço! Não é o fim do mundo! Calma! Estou
aqui com você. – sabia que Daniel era fraco para bebida alcoólica e num porre
sempre ficava chorão.
_ Sabe... – dizia ente os soluços – quando
fizemos o pacto de catchup?
Estavam dentro da barraca no acampamento quando
Daniel veio até ele, com o dedo sujo, pensou que tinha se machucado por causa
da cara de dor que ele fazia e pelo dedo que pingava, mas ele logo disse que
era catchup. Queria fazer um pacto de amizade. Então, entregou o pote do molho
para ele que o pediu para esperar, virou-se de costas para o amigo, e furou o
dedo com um anzol e cobriu com o catchup. Desejava algo verdadeiro. Encostaram
um dedo no outro e prometeram amizade verdadeira para sempre. Estava selado.
_ Sei. – Thiago lembrou.
_ Então... Eu furei meu dedo de verdade naquela
noite. Furei com o estilete. Pensei que tudo valeria pelo menos com o meu
sangue.
_ Eu furei o meu com um anzol. – disse Thiago
sorrindo, quando o amigo se afastou surpreso com a confissão. – Então foi um
pacto de verdade. Valeu.
“Quando a chuva está soprando no seu
rosto,
e o mundo todo depende de você,
Eu
poderia te oferecer um abraço caloroso
Para
fazer você sentir o meu amor...”.
A música Make you feel my
love caia como uma luva na situação. Se fosse ensaiado não daria tão certo.
“Vou aproveitar!” – foi a ideia maluca que passou pela cabeça de Thiago que sem
pensar no que poderia acontecer, roubou um beijo do amigo. Daniel não respondeu
ao beijo, estava estático.
“Quando as sombras da noite e as
estrelas aparecerem,
E
então não tiver ninguém lá para secar suas lágrimas,
Eu
poderia segurar você por um milhão de anos,
Para
fazer você sentir o meu amor...”.
_
Eu te amo, meu amigo! – Thiago disse olhando nos olhos de Daniel que tomou a
iniciativa e retribuiu o beijo roubando o fôlego de Thiago. Afastou-se de
súbito.
_
Juro que estou me sentindo esquisito, e sei que isso é muito gay, me faz um
gay, nossa que confusão!
_
Esquece isso, moço! – beijando-o novamente.
Daniel
não resistiu, afinal não poderia negar para ele mesmo o que sentia. E Thiago
era um amigo, aliás, o amigo. Acontecia o que ele mais temia, os pensamentos
giravam em torno de tudo que poderia perder por causa do que estava
acontecendo, mas estava seguindo o conselho de escolher o caminho da
felicidade.
Thiago
não acreditava em tudo aquilo. Estava no céu. Um amigo tão querido como Daniel.
Sua cabeça também se enchia de pensamentos sobre aquele momento e tudo o que
passara para chegar até ele. E depois, se viajasse?
“Eu sei que você não se decidiu ainda,
Mas
eu nunca te faria nada de errado,
Eu
já sei que desde o momento que nos conhecemos,
Não
há dúvida na minha mente
De
onde você pertence...”.
Eram
tantas perguntas sem respostas, tantos questionamentos que se passaram na
cabeça deles. O medo de serem descobertos, julgados por quem nunca teria
competência suficiente para fazê-lo. Condená-los por nada, porém não queriam
saber de nada. Estavam felizes, pensassem o que fosse. Queriam apenas amar e
serem amados. Quem os condenaria por isso? O que escolheriam?
Os
carinhos se intensificaram e caíram sobre a cama. Escolheram esquecer as
perguntas, elas seriam respondidas assim que tivessem tempo. Nenhum dos dois
esperava que aquilo acontecesse. Agora, estavam viajando numa nova experiência,
viajavam um no outro. A chuva caia. A música dizia tudo o que um queria dizer
para o outro.
“Eu poderia fazer você feliz,
Fazer
os seus sonhos se tornarem reais,
Nada
que eu não faria,
Vou
ao fim da Terra por você
Para
fazer você sentir o meu amor...”.
Continua...
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