sexta-feira, 12 de outubro de 2012

43| Lembranças perdidas.



                         _ Fala! – Thiago repetiu em voz alta, as pessoas começaram a olhar para eles.
                    _ Calma Thiago! Espera! Calma! – disse Júlia, tentava contê-lo, pois estava exasperado – Guillermo conta o que foi que te falaram.
                    _ É... Quando estávamos no hospital, eu liguei quando fui ao banheiro, quem atendeu foi uma tal de... Flávia, eu acho! E disse que ele havia sofrido um acidente na madrugada. Ele capotou o carro e teve que passar por alguns procedimentos cirúrgicos, e que ficaria bem, mas pelo jeito ele deve ter piorado.
                    _ E porque você não me contou? Por quê? – perguntou Thiago que já tinha soltado o colarinho do amigo e estava sentado para frente imaginando mil coisas.
                    _ Você estava no hospital em recuperação. Não queria vê-lo dar outro ataque do coração na mesma hora, o médico recomendou que evitasse notícias ruins. E ainda mais porque a primeira pessoa por quem você chamou foi o Daniel.
                    _ Quem é Daniel? – Júlia perguntou, sem se lembrar de que já haviam comentado sobre ele.
                    _ Você não tinha o direito de esconder isso de mim. Afinal foi para isso que te pedi para ligar para ele. – continuou Thiago como se não tivesse escutado.
                    _ Sou eu quem te pergunto agora. – Guillermo levantou moderadamente seu tom – Você queria morrer? Me responde. Queria? Por que de uma hora para outra você no apartamento com uma puta dor no coração, chama pelo amigo de infância – olhou para Júlia dando-lhe a resposta – e queria descobrir que na mesma hora ele tinha sofrido um acidente grave. O que você acha que iria acontecer?
                    Eles esqueceram que estavam sendo olhados por todos no saguão, menos pelos que usavam fones de ouvido.
                    _ E por que você não me disse quando estávamos vindo para cá? Queria que eu fizesse o trabalho e só. Talvez nem me contaria a verdade.
                    _ Thiago, o trabalho é para um cliente importante da agência e...
                    _ Que se dane! Eu me preocupo com os meus. Com quem amo primeiro e trabalho depois.
                    Thiago se levantou e começou a andar de um lado para o outro, impaciente, queria chegar logo em São Paulo. Guillermo ia dizer algo quando foi impedido por um sinal da Júlia.
                    _ Você não podia ter feito isso comigo... – dizia Thiago quando viu as pessoas olhando para ele – O que foi? Perderam algo aqui?
                    Júlia se dirigiu até ele.
                    _ Thiago, eu sei que você deve estar mais do que preocupado agora, mas não pode ajudar em nada. E todo esse estresse te fará mal. Calma! Respira. Assim que chegar a São Paulo poderá visitar seu amigo e prestar a ajuda que tanto precisa, agora se acalme para não passar mal.
                    _ Meu amigo está em coma. Meu Deus! E se ele morrer? – as lágrimas rolavam grossas dos olhos.
                    _ Senta aqui. – sentaram-se um pouco afastados do Guillermo que sabia que tinha feito o correto, mas estava triste pelo amigo – Calma, vai dar tudo certo!
                    Uma voz feminina fez a primeira chamada.
                    Os dias literalmente se arrastaram no hospital onde Daniel estava internado, tinha ido transferido para a UTI de um grande hospital de São Paulo. Seu coma ainda era induzido, pois precisava de tratamentos específicos. Sofrera um trauma muito grande. Seu rosto estava pálido com alguns hematomas e lesões. Um curativo cobria o corte que havia na sombrancelha e sua cabeça estava enfaixada.
                    Tereza ficava a maior parte de dia no hospital, esperava que a qualquer momento o médico viesse com uma boa notícia. Estava angustiada e não conseguia comer direito. Quando entrava no horário de visitas, conversava com o filho, dizia o quanto fazia falta. João Pedro, o pai de Daniel, aparecia quando podia porque estava trabalhando, mas havia deixado a irmã com a esposa para que a pudesse ajudar.
                    _ Dona Tereza. – disse o médico.
                    _ Pois não, doutor alguma novidade?
                    _ Sim! O filho da senhora vai sair da UTI hoje, já irá para o quarto.
                    _ Que bom doutor! Isso me alegra muito. – disse depois de abraçar o médico.
                    _ Ele está desacordado, nós realizamos os exames, estamos apenas esperando as respostas, mas queremos acompanhar sua melhora no quarto para avaliarmos algumas coisas. Tudo ocorrerá bem.
                    A viagem foi tensa. Thiago sentou mais afastado, estava com raiva de Guillermo e não via a hora de pousar em São Paulo e ir visitar o amigo.
                    O avião posou no aeroporto com alguns minutos de antecedência, foi uma tortura para Thiago esperar os amigos acharem as malas. Por fim, conseguiram encontrá-las e arrumaram um táxi. Júlia se despediu com um beijo do modelo:
                    _ Tem certeza que não quer que eu vá com você? Se quiser posso ir sem problemas.
                    _ Não precisa! Quero que você descanse. Não se preocupe comigo! Vai ficar tudo bem!
                    _ Não fique com raiva do Guillermo, ele fez pensando no seu bem e o médico recomendou.
                    _ Não estou com raiva. Pensei durante o vôo e entendi o lado dele, mas quero que ele sofra um pouco, acho que merece. – sorriu forçadamente.
                    _ Você me liga?
                    _ Sim! Com certeza!
                    Se despediram com um beijo e partiram cada um para seu caminho. No táxi, Guillermo evitava falar, não queria que o amigo explodisse em cima dele.
                    Thiago esperava que ele se manifestasse. Nada aconteceu, então resolveu falar.
                    _ Obrigado! – disse em voz baixa.
                    _ Está me agradecendo por ter te privado de um direito? – Guillermo disse olhando pela janela.
                    _ Não, mas por ter se colocado em meu lugar. – Guillermo o olhou – Acho que não seria agradável ter um novo ataque do coração.
                    _ Não, não seria! – virou-se novamente para a janela.
                    Thiago esperou mais uma vez.
                    _ Você me perdoa?
                    _ Por quê?
                    _ Pelo escândalo que dei no aeroporto. Exagerei. Você não merecia.
                    Virou-se para Thiago.
                    _ Não há o que perdoar. Te compreendo.
                    _ Posso te fazer uma pergunta? – disse tímido.
                    _ Quer pegar o número de protocolo também? Para que essa formalidade comigo? – falava sério.
                    _ Você está mancando mesmo porque... Lá... É... – gaguejou – O moço lá...
                    Guillermo não pode contar o riso.
                    _ Hum? O quê?
                    _ Ah, você sabe...
                    _ Você é um besta mesmo!
                    _ Claro que não! Escorreguei no banheiro mesmo. – riu.
                    _ Sério?
                    _ Foi! Cai sentado. Várias vezes.
                    _ Só você mesmo, viu!
                    Chegaram ao apartamento, Thiago deixou as malas no quarto, tomou um banho rápido e se arrumou para ir ao hospital. Ligou para a mãe de Daniel, ela passou as instruções de onde estavam e disse que o médico os liberou para o quarto, então estariam no apartamento.
                    Thiago se despediu de Guillermo e partiu chegando rapidamente ao hospital.
                    Tereza o recebeu na recepção com um abraço.
                    _ Me perdoe minha tia, eu acabei de chegar de uma viagem que fiz a trabalho, infelizmente só fiquei sabendo na volta.
                    _ Que saudade de você! Quanto tempo, hein? Não tem problema meu filho, eu que te peço perdão por ter te mandado uma sms e não ter ligado para falar mais claramente.
                    _ Como ele está? Parece que é só a gente se afastar para ele aprontar, meu Deus!
                    _ Pois é, quando você estava lá ele não aprontava tanto. Não estava lá quando aconteceu, mas a Roberta disse que ele foi se desviar dela no meio da rua quando ele virou a direção e por causa da velocidade o carro capotou.
                    _ E o freio do carro? – perguntou Thiago.
                    _ Não funcionou, e o mais engraçado, para não dizer o contrário, é que o carro tinha acabado de sair da revisão.
                    _ Isso é estranho, mas vamos deixar isso para lá, quero vê-lo. Ele está no quarto, não é?
                    _ Você pode entrar, mas ele ainda não acordou...
                    _ Não tem problema, apenas quero vê-lo.
                    _ Vamos lá...
                    Entraram no quarto que estava iluminado por uma luz suave, havia uma tv de LED na parede, e sobre uma bancada abaixo, alguns porta-retratos que Thelma havia trazido de casa para quando o filho acordasse se sentisse mais à vontade. Um jarro com flores estava próximo a janela que tinha uma cortina branca semi-transparente, mas os olhos de Thiago não repararam em tudo isso, assim que pisou dentro do quarto, seus olhos se fixaram num único objeto.
                    _ Dan! – sussurrou com os olhos se enchendo de lágrimas.
                    Tereza pôs a mão sobre o ombro dele, conformada.
                    _ Não se preocupe! Está tudo bem. Estava pior antes com aparelhos e aquele som irritante em nosso ouvido. Agora sabemos que está bem.
                    Thiago olhou o amigo de cima a baixo e limpou as lágrimas que teimavam descer.
                    _ Vou deixá-los sós. – disse Tereza – Preciso comer algo.
                    _ Obrigado!
                    A mãe do rapaz saiu do quarto, então Thiago se sentiu à vontade para pegar na mão dele. A única reação do paciente era o levantar suave no abdômen advindo da respiração.
                    _ O que você estava fazendo rapaz? Não consegue viver sem entrar em encrenca? – seu polegar alisava o dorso da mão do amigo que parecia dormir um sono profundo. – Engraçado como de uns tempos para cá tanta coisa aconteceu em nossa vida não é? Tudo se desenrolou quando fomos ao Festival, aquilo tudo que nem gosto de lembrar...
                    Chorou a ponto de molhar a mão que segurava.
                    _ Às vezes me pego pensando se nossas escolhas tivessem sido outras, como estaríamos, creio que em qualquer lugar menos aqui. Só que aprendi que o “se” não nos leva a lugar algum, nunca mais saberemos o que teria acontecido. Não tentamos, não é mesmo?
                    Afagou os cabelos que escapavam pela faixa, descendo a mão pelo rosto machucado, apesar de estar assim continuava lindo, e percebeu que sentia falta dos olhos dele, daquele brilho que lhe puxava o ar.
                    _ Acorda! – disse segurando ainda mais sua mão – Vai Daniel, acorda.
                    Olhou para a porta, abaixou-se até o ouvido, queria sussurra-lhe algo.
                    _ Fica comigo! Não vai embora não! - riu baixinho – É minha vez de pedir.
                    O corpo de Daniel estremeceu levemente como se algo tivesse acontecido dentro dele. Thiago se endireitou assustado, observando o que aconteceria.
                    Nada aconteceu.
                    _ Estou aqui como você me pediu.
                    Thiago abaixou a cabeça e saiu do quarto. Thelma estava sentada nas cadeiras que ficavam ao lado da porta, sentou-se ao seu lado.
                    _ É terrível vê-lo assim.
                    _ É sim! - Ela concordou – Mas ele vai sair dessa.
                    _ Sim, vai! – demorou-se um pouco para falar – Posso ficar mais um pouco aqui com ele?
                    _Thiago, você não precisa pedir isso. Você é da família. Claro que pode.
                    _ A senhora pode aproveitar e fazer alguma coisa que não deu pra fazer sozinha aqui.
                    _ Sim! Se acontecer qualquer coisa, há um botãozinho ao lado da cama, é só apertá-lo e a enfermeira vem vê-lo. Está bem?
                    Ele afirmou com a cabeça.
                    _ Como está sua vida aqui? Está gostando de ser modelo?
                    Thiago a contou algumas coisas que passou, as viagens e cursos que teve que fazer e que estava aperfeiçoando o inglês e aprenderia italiano e francês.
                    _ E precisa falar tantas línguas assim?
                    _ Não. Hoje o inglês é básico, mas sempre quis falar mais línguas. Só falo inglês e espanhol fluentes, mas quero falar o francês e italiano.
                    Tereza disse que Pedra Branca continua a mesma, não cresceu ou teve tantas coisas notáveis desde que Thiago a deixou, mas que João Pedro a contara de um crime que aconteceu há alguns dias que a chocou.
                    _ Não sei se você lembra do Nelson...
                    _ Nelson? – fazendo força para lembrar – Acho que não conheço.
                    _ Conhece sim! Era lá da escola que vocês freqüentavam...
                    _ Nel... Neo! O que aconteceu? Ele matou alguém? – perguntou espantado.
                    _ Não. Foi encontrado morto num drive in da cidade – acompanhou a expressão assustada – Foi envenenado e quando o encontraram estava nu algemado com essas coisas de sexshop. Ninguém sabe quem foi. Dizem que foi uma mulher, mas como já corre o boato que ele foi visto entrando com alguém de peruca lilás, pode até ter sido um travesti, não é?
                    _ Gente, a família dele deve estar arrasada.
                    _ Pois é... Isso é inconseqüência. A maioria desses jovens não sabe com quem sai hoje.
                    _ A senhora está sozinha mesmo?
                    _ Não. Minha cunhada está comigo, mas como o quadro do Dani se estabilizou eu pedi para ela ir para casa descansar um pouco.
                    _ Ela mora aqui?           
                    _ Sim! Temos revesado, mas como eu a disse também que você viria fiquei aqui dois dias seguidos porque queria te esperar e te ver. Hoje você veio bem a calhar. Vamos explorá-lo.
                    _ Claro! Estou aqui para ajudá-los no que for preciso.
                    _ Então, vou precisar ir à casa dela, tomar um banho e trocar de roupa, ela viria , mas como você já está aqui.
                    _ Fique à vontade para fazer o que a senhora precisar estou de folga três dias. Se quiser posso dormir aqui e então a senhora pode descansar e vim amanhã. Qualquer coisa eu ligo.
                    _ Sério que você faria isso?
                    _ Isso a senhora nem precisa perguntar.
                    Conversaram mais um pouco e então Tereza saiu dizendo que alguém voltaria de manhã cedo.
                    Thiago voltou para o quarto, olhou o amigo mais uma vez e sentou-se à beira da cama. Pegou o celular, olhou a hora, já eram dez horas da noite. Selecionou na tecla menu a opção de mídias e entrou na pasta de canções favoritas e escolheu uma. A canção que ele nunca esqueceria, como muitas outras que marcaram a vida dele em determinados momentos.
                    Começava chover na cidade e pela chuva que caía em breve ouviriam que muitas ruas foram alagadas e alguns acidentes, coisas normais.
                    _ Parece que essa música atrai chuva. – lembrou.
                   
            “Quando a chuva está soprando no seu rosto,
                                                           e o mundo todo depende de você,
                                                           Eu poderia te oferecer um abraço caloroso
                                                           Para fazer você sentir o meu amor...”.
                                                                                                                                                         
                    _ Você poderia acordar, não é? – conversava esperançoso.
                   
“Quando as sombras da noite e as estrelas aparecerem,
                                                           E então não tiver ninguém lá para secar suas lágrimas,
                                                           Eu poderia segurar você por um milhão de anos,
                                                            Para fazer você sentir o meu amor...”.

                    Thiago beijou levemente os lábios estáticos de Daniel. Levantou-se e foi até a janela olhar a chuva. Lembrava da noite na fazenda, acontecera tudo tão inusitadamente. Riu-se por lembrar do seqüestro. Se perguntou se o Daniel saberia no que daria aquilo tudo. A chuva caia pesadamente sobre tudo, enquanto Thiago viajava no passado com o olhar perdido para fora.

“Eu sei que você não se decidiu ainda,
                                                           Mas eu nunca te faria nada de errado,
                                                           Eu já sei que desde o momento que nos conhecemos,
                                                           Não há dúvida na minha mente
                                                           De onde você pertence...”.

                    Daniel levantou a sombrancelha como se reconhecesse mentalmente a música, estava voltando. Seu rosto demonstrava certo incômodo, ajeitou-se silenciosamente sobre a cama. Seus olhos se abriram revelando a vida que pulsava neles, porém diferente de certa forma. Era uma cor viva, porém vazia. Mexeu o pescoço de um lado para o outro. Viu o celular tocando em sua perna, observou o quarto e viu que não estava só.
                    Um rapaz alto de calça e jaqueta jeans desbotados e estava olhando para fora. Observava a chuva. Seu cabelo estava aparado, de costas era um belo exemplar. Ia falar alguma coisa, mas antes resolveu se consertar mais uma vez, não conseguia achar uma posição que o agradasse.

“Eu poderia fazer você feliz,
                                                           Fazer os seus sonhos se tornarem reais,
                                                           Nada que eu não faria,
                                                           Vou ao fim da Terra por você
                                                           Para fazer você sentir o meu amor...”.

                     _ Ai! – Daniel exclamou doloridamente.
                     Thiago virou-se imediatamente e o viu acordado. Sorriu, mas não conseguia falar. Chegou-se próximo a cama.
                     _ Que bom que você acordou, meu amigo? Que bom! Você não sabe o tamanho de minha alegria em te ver. Que bom que você acordou! Todo mundo estava esperando isso.
                     No rosto de Daniel, além das faixas e curativos havia uma expressão diferente, a mesma que caracterizava o vazio dos olhos. A mesma expressão que se faz quando vai a uma festa onde não se conhece ninguém, ou quando se está à mesa com estranhos. Thiago sorria feliz da vida, quando segurou a mão do amigo.
                     _ Você se sente bem, meu querido?
                     Daniel não sorria, não tinha motivo para isso.
                     _ Quem é você? – puxou a mão – Nunca te vi.
                     Agora era Thiago quem não ria mais.

Continua...
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